sexta-feira, 23 de julho de 2010

O Nasceu ( Um conto do "Histórias do Grande Animal Sorridente")



O Nasceu

Como aquelas pessoas que divorciadas carregam em suas carteiras fotos das “crianças” e não se acanham em te mostrar na primeira oportunidade: “Essa daqui é a Roberta, essa foto é de quando ela tinha dez anos!” E hoje, a Roberta tem quase dezessete. O Nasceu tinha uma história que ele apresentava como se fosse essa foto. A sua história não vivia na carteira, estava bem no meio da testa e não havia como você, nem ele, disfarçar.
Claro que seu nome não era Nasceu, nem Nascimento. Seu nome é Osmar Luiz dos Santos, apelidado de Nasceu. Sempre morou em Virada, quando não na cidade, viveu numa fazenda na região, mas sua vida adulta é toda ela passada em Virada. Sua esposa é dali também. Isso tudo eu descobri depois, na história que ele conta nada disso entra nela.
Parece que tudo mais ou menos se deve, por causa do Stallone, ou melhor, pelo filme do Cobra. Nasceu viu esse filme e endoidou, passou a partir de então a almejar uma pistola, no começo queria aquela, mas depois das primeiras tentativas viu que aquele tipo seria impossível, então se contentou com uma outra semelhante. Não podia ser um revólver qualquer, 22, 38 com tambor,... tinha que ser daquelas que colocavam o pente pela empunhadura e que fosse armada por cima e desmontável. É bom dizer, que ele nunca tivera nenhum envolvimento com armas antes disso, somente uma vez seu cunhado o deixou dar um tiro de cartucheira.
Depois de muito procurar nas casas de Caça & Pescas da região e nada encontrar, tentou com um policial, que o desaconselhou da posse, mas acabou fornecendo o nome de um sujeito que poderia lhe “importar” uma do Paraguai. Nasceu mostrou uma foto de um recorte de revista e o sujeito confirmou que poderia arrumar, pediu um tempo para que pudesse lhe dar o preço.
Com o preço, Nasceu foi até ao banco e tentou resgatar seu Fundo de Garantia, como não conseguiu, iria pedir a conta do serviço, mas o gerente o perssuadiu e ele topou um empréstimo.
O “Importador” cumpriu o trato e trouxe uma Taurus 380 e uma caixa de balas, além do valor, obviamente, pediu sigilo total a Nasceu.
Ele não queria matar ninguém, era o cara mais pacífico do mundo a possuir uma 380!
Para que ele queria a arma? Para nada!, para montar e desmontar. Fetiche!
Depois da primeira semana, não resistiu e mostrou para o seu cunhado. O fundo da casa de Nasceu dava para um pasto. E foram atirar num mourão da cerca. Em outro sábado convidou outro soldado que trabalhava com ele para ir lá atirar. Não demorou para que tivesse um pequeno grupo de admiradores. Tanto que teve que evitar alguns: “A bala era cara!” Depois que atiravam Nasceu ia para casa , desmontava, limpava e guardava. Trabalhava a semana toda só esperando o próximo sábado.
Chegaram a rachar a compra de uma caixa de balas, improvisaram um alvo quando o mourão já não aguentava mais nenhum tiro. Até seu encarregado tinha ido em sua casa para atirar.
Mas foi num sábado chuvoso, e como já chovia a semana toda Nasceu não combinou nada com o grupo. Por volta de umas onze e meia sentou na mesa da cozinha, a mulher cortava um frango na pia que seria o almoço. Põs a arma na mesa, o filho assistia tv na sala, a mulher ia da pia para o fogão e conversavam sobre a filha do prefeito que tinha capotado um carro por aqueles dias.
Com a flanela ele limpava a arma, tirou o pente e limpou, carregou e deixou de lado. A caixa de balas ia para menos da metade.
No momento que a mulher perguntou, porque ele não ia fazer aquilo na mesa da área, ouviu o tiro. Ao pegar a pistola, num descuido, havia uma bala na agulha, num outro, puxara o gatilho, no último descuido, estava apontada pra sua cara: “Cheguei a ver a bala sair!”
Sua mulher desmaiou com o corpo do marido pendido pra trás na cadeira, o sangue jorrando, o teto da cozinha estourado e o cheiro de pólvora.
O filho chamou o vizinho e correram com os dois para o pronto-socorro. A mulher voltou a si ali mesmo. Nasceu foi removido para a emergência da Santa Casa mais próxima.
Depois de alguns exames o médico disse que por um milagre ele estava fora de perigo: “A sua sorte é que a arma era nova e potente, o que fez com que a bala não desviasse, atravessando o crânio, na radiografia pode se observar que passou a milimetros do cérebro. Foi um milagre, o senhor Nasceu de novo!” O doutor foi quem lhe botou o apelido.
Quando eu o conheci, tudo isso já havia passado, ele tinha “apenas” uma costura, que parecia uma grossa carreira de cupim, que começava no olho esquerdo, perto do nariz , atravessava toda a testa até uma falha no começo do cabelo.
Eu trabalhava como mecânico numa usina e precisei de um soldador, mandei chamar um e apareceu esse sujeito, que estendeu a mão e falou: “Pode me chamar de Nasceu.” Enquanto eu disse qual era o serviço ele me contou toda essa história. Perguntei pela arma, que ele me respondeu não saber. Quis saber como assim?! E ele disse que quando saiu do hospital não estava mais lá, perguntou, mas ninguém falou nada. “Acho que meu cunhado deu um fim, a única coisa que eu tenho é isso daqui”- apontou para o meio da cara – “e isso daqui” – tirou pra fora da camisa uma correntinha que o pingente era uma bala amassada, que mais parecia um solzinho – “estava enfiada na viga da madeira do teto!”
Eu falei o que todo mundo falava ao ouvir essa história:
-Cara, você nasceu de novo!
Com um sorriso na cara toda torta, acho que ele respondeu da mesma maneira que respondia a todo mundo: “Pode apostar!”
Lembrei que minha vó sempre dizia que o Diabo matou a mãe dele com uma espingarda descarregada.



Conto do livro "HISTÓRIAS DO GRANDE ANIMAL SORRIDENTE" J.R.Bazilista

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